por Conceição Lemes
A saúde pública na cidade de São Paulo está com a gestão largamente privatizada. Boa parte dos seus hospitais, ambulatórios médicos e serviços de diagnóstico já é dirigida por Organizações Sociais de Saúde (OSs) e não pela própria Prefeitura.
Na campanha do segundo turno, o paulistano que as desconhecia acabou sendo “apresentado”. O candidato derrotado à Prefeitura José Serra (PSDB) bateu nesta tecla:
Hoje boa parte dos AMES [Ambulatórios Médicos de Especialidades] e hospitais municipais são administrados pelo Einstein, Sírio, Santa Marcelina, considerados os melhores hospitais de São Paulo. O PT não quer que os bons hospitais da cidade ajudem a melhorar o atendimento dos hospitais da Prefeitura.
Seu alvo não era a população mais pobre, que conhece a dura realidade da saúde na cidade e para a qual não adiantava mentir.
Serra mirava especialmente o imaginário dos eleitores da nova classe média, que realizaram o sonho do plano de saúde privado e hoje vivenciam um inferno nas mãos de muitos deles: rede credenciada precária, longa espera para consultas, exames, cirurgias. Isso quando não negam exames e tratamentos mais complexos e caros, o que é frequente.
Serra usou e abusou dos sofismas. A intenção era “vender” que, nos serviços da Prefeitura administrados por OSs, esses eleitores teriam, enfim, o sonho realizado: assistência médica em equipamentos acolhedores, sem fila, prestada por hospitais de referência, recebendo todos os cuidados necessários e de primeira linha. Curiosamente, em nenhum momento, o tucano fez qualquer menção aos custos desse modelo de terceirização de gestão.
Só que:
1. O fato de o Sírio Libanês, Einstein, Santa Catarina, Santa Marcelina, entre outras grifes da medicina paulista, gerenciarem equipamentos de saúde da Prefeitura não significa que prestarão nesses locais os mesmos serviços que oferecem nos seus hospitais. Eles o fazem por meio de entidades paralelas que criaram; essas, sim, foram qualificadas pelo poder público como OSs.
2. Tampouco atuarão nos serviços da Prefeitura os mesmos médicos que trabalham no Sírio, Einstein, Santa Catarina.
3. Muito menos que as OSs praticam filantropia nos serviços da Prefeitura ou fizeram opção preferencial pelos pobres. O gerenciamento desses equipamentos é para elas apenas um negócio em constante expansão.
Segundo auditoria realizada no início deste ano pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP) nas contas de 2011, a Secretaria Municipal de Saúde repassou às OSs R$ 1,8 bilhão, em 2010. Em 2011, R$ 2,2 bilhões. Nesse valor não estão incluídos os muitos milhões que o governo do Estado repassa às OSs que dirigem hospitais públicos estaduais na cidade de São Paulo.
Cabe lembrar, aqui, que há denúncias de que hospitais renomados não foram diretamente qualificados como OSs por estarem em situação irregular com o fisco e não atenderem às exigências legais.
4. Os gastos do governo do Estado com as OSs também é imenso. Atualmente, elas administram 81 equipamentos públicos paulistas. São 37 hospitais e outras 44 unidades estaduais.
5. Teoricamente as OSs são entidades filantrópicas, o que as livra do pagamento de milhões de imposto de renda. Na prática, porém, funcionam como empresas privadas, pois o contrato com a Prefeitura é por prestação de serviços. Elas recebem os equipamentos de saúde absolutamente aparelhados, de mão beijada. E tudo o que gastam é pago pelo cofre municipal. Além disso, cobram taxa de administração, cujo valor não aparece nos contratos de gestão assinados. Falta, portanto, transparência e controle público sobre elas.
6. Tudo isso vale para as OSs que administram os serviços públicos do Estado de São Paulo.
Aqui, a introdução desse modelo coube aos tucanos. Inicialmente nos hospitais estaduais da capital. Daí ele se espalhou. Nos serviços municipais de saúde, especificamente, as OSs começaram a ser implantadas em 2005, quando a dupla Serra e Gilberto Kassab (na época, DEM, atualmente PSD) assumiu a Prefeitura.
Detalhe: pela proposta do SUS (Sistema Único de Saúde), os hospitais gerais do Estado deveriam estar sob gestão municipal. Porém, em São Paulo, a entrega desses hospitais às OSs impediu que fossem municipalizados.
7. A Prefeitura, tal qual o governo estadual, propagandeia que os serviços de saúde tocados por OSs significam fim das filas, presença de médicos nos equipamentos, menor custo e racionalidade do sistema. “Os hospitais gerenciados por Organizações Sociais são exemplo de economia e eficiência”, diz o
site da Secretaria Estadual de Saúde. Inclusive pesquisas foram contratadas com recursos públicos para atestar sua excelência.
8. Mas a realidade contradiz o discurso dos defensores das OSs. Há longas filas para consultas com especialistas, exames, diagnósticos e tratamentos. Faltam médicos nos serviços, especialmente nas periferias da capital.
9. Também é mentira que custam menos. Levantamento realizado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo demonstrou que os serviços de saúde administrados por OSs custam 40% mais do que os gerenciados diretamente pelo poder público.
10. As OSs representam a terceirização da saúde. Porém, no Estado de São Paulo, elas já estão transferindo parte dos seus serviços para empresas que contratam. É a quarteirização da saúde pública paulista. Atualmente, 25% dos serviços já estão quarteirizados.
11. Em levantamento que fizemos em junho de 2011, havia na época 34 hospitais públicos paulistas geridos por OSs; desses, 22 tinham publicado balanço referente a 2010. Somente quatro (todos com contratos recentes) possuíam patrimônio positivo. Os outros 18 hospitais apresentaram passivo maior do que o ativo, ou seja, 80% estavam “quebrados”.
Juntos tinham um rombo acumulado de R$147,18 milhões.
Entre os 18 hospitais públicos paulistas “quebrados”, havia dois administrados pelo Santa Marcelina (uma das OSs citadas por Serra na campanha): o Hospital Geral de Itaquaquecetuba e o Hospital Estadual do Itaim, que acumulavam rombo de R$ 5,1 milhões e R$ 3,8 milhões, respectivamente.
O Hospital Geral do Grajaú, administrado pela Organização Cristã de Santa Catarina (a OSs do Hospital Santa Catarina, mencionada também por Serra na propaganda eleitoral), estava igualmente no vermelho. Até 2010 tinha um déficit acumulado de R$ 25 milhões. Em fevereiro de 2012, o governo paulista transferiu a sua gestão para o Sírio Libanês, aumentando em 16% o repasse anual. Subiu de quase R$ 94 milhões para R$ 104 milhões.
Balanço de 2011 do Santa Catarina revela um déficit de R$ 12,78 milhões. Somados aos R$ 25 milhões anteriores, o rombo atingiu 37,78 milhões. Mas como recebeu uma transferência de R$ 32 milhões, ficou ainda um buraco de R$ 5,58 milhões. Confira abaixo.
Nessa altura, algumas perguntas são inevitáveis: o jeito de resolver o problema crônico de déficit é trocar o gestor, aumentar o repasse de recursos e “limpar” o balanço? Como fica o rombo passado? Quem vai pagar a conta?
12. Serra também repisou: se o petista Fernando Haddad fosse eleito, mais de 30 mil funcionários das OSs seriam demitidos. Outra inverdade, embora o número de funcionários da OSs nos serviços municipais seja alto mesmo. Segundo dados de junho de 2012, dos 79 mil funcionários municipais do setor saúde, 37 mil trabalham em OSs.
O que pode ocorrer — isto, sim, verdadeiro – é a Justiça decidir aplicar nos contratos entre a Secretaria Municipal de Saúde e as OSs a mesma decisão que tomou para o Estado.
13. Na realidade, a auditoria feita pelo TCM-SP indicou a existência de uma verdadeira caixa-preta nos serviços de saúde da Prefeitura gerenciados por OSs.
Para começar, há falta absoluta de transparência e fiscalização. A Prefeitura não tem controle sobre os gastos nem sobre os serviços prestados pelas OSs. O setor que cuida da questão somente verifica se houve ou não prestação das contas. Não as avalia. E nem poderia. Tem apenas – pasmem! — seis funcionários para fazer isso.
A contratação de recursos humanos é feita sem qualquer tipo de avaliação ou concurso, inclusive dos médicos, que geralmente são recém-formados.
A própria OSs ou a Prefeitura poderia fazer esse processo seletivo, que, ao contrário do que Serra andou dizendo, não faz dos contratados servidores públicos. Eles serão funcionários da OSs, embora aprovados em sistema de seleção pública, mediante contrato pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
14. Além disso, as OSs contratam funcionários, pagando, no mínimo, o dobro daquilo que o servidor público ganha. Porém, o dinheiro – atenção! – sai do mesmo bolso, o da Prefeitura.
Não é o único problema. Há também discrepâncias de salários e direitos, até entre os funcionários das OSs. Isso sem falar que às vezes no mesmo local trabalham funcionários públicos e contratados, fazendo serviços iguais, com salários diferentes. Aqui, a intenção da administração Kassab é política: “quebrar” o funcionalismo público na área da saúde.
15. A auditoria do TCM-SP demonstrou que em 2011 o orçamento da saúde cresceu 14,42% em comparação a 2010.
Curiosamente o aumento do volume dos principais serviços e ações não foi proporcional ao crescimento dos gastos. O número de consultas em especialidades subiu apenas 3,68%, e as consultas de AMA (Assistência Médica Ambulatorial), 3,29%.
Já os atendimentos de Urgência e Emergência e as consultas em Unidades Básicas de Saúde (UBSs) diminuíram! Tiveram decréscimo de 6,54% e 5,64%, respectivamente.
Paradoxalmente, quanto mais aumentam os gastos, pior é a avaliação pela população dos serviços de saúde.
16. Na proposta orçamentária enviada à Câmara Municipal, Kassab previu R$ 42 bilhões para a cidade toda em 2013. Em 2012, o orçamento foi de R$ 38,7 bilhões. Ao setor saúde, especificamente, destinou R$ 6,530 bilhões. Em 2012, atingiu R$ 6,515 bilhões.
Conclusão: a proposta de orçamento de Kassab para 2013 prevê aumento de 8% nos gastos da cidade, mas praticamente não altera os da saúde.
17. Outra conclusão da auditoria do TCM-SP é esta (pág. 38 do relatório):
Daí os R$2,2 bilhões repassados às OSs pela Prefeitura em 2011.
Uma vez nas mãos delas, esse dinheiro vira privado, sem que haja qualquer controle público sobre os gastos. As OSs contratam serviços e profissionais a seu bel prazer, sem prestar contas a ninguém. Um cofre sem fundo. Uma terra de ninguém. Capitalismo sem risco, compra sem licitações, contratação de pessoal sem processo seletivo e ausência de transparência nos salários praticados para quem dirige essas OSs.
18. Todo esse processo está sob o comando de Januário Montone. Afinal, é o secretário Municipal de Saúde desde 2007. Montone é tucano, homem de confiança de Serra, com quem trabalhou no Ministério da Saúde. Em 2005, quando Serra assumiu como prefeito, Montone foi nomeado secretário municipal de Gestão, pasta que trocou pela Saúde no governo de Kassab.
19. Por todas essas razões, é imperioso abrir a caixa-preta em que se transformaram as OSs que gerem os serviços da Prefeitura de São Paulo.
A equipe que elaborou o programa de saúde de Fernando Haddad foi coordenada por dois craques na área: o vereador Carlos Neder (PT), ex-secretário de Saúde de Luiza Erundina, e o professor Mílton de Arruda Martins, titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP.
Ambos são médicos e como tal sabem que, apesar de já terem indícios sobre a “doença”, só com diagnóstico bem feito, preciso, é possível prescrever o “tratamento” adequado.
20. Isso implica se debruçar sobre todas as OSs, inclusive Einstein, Sírio Libanês, Santa Marcelina, Santa Catarina, e começar um controle rigoroso da quantidade e qualidade dos serviços prestados por elas. Tem de se atentar também às prestações de contas.
E aquelas que não cumprirem as metas estabelecidas nem oferecerem serviços de qualidade?
Evidentemente que todos os contratos existentes devem ser honrados. Porém, se não forem cumpridos adequadamente, deveriam ser rompidos em nome de um bem maior: a saúde pública dos paulistanos.
Fica aqui mais pergunta: como compatibilizar a existência de um plano municipal de saúde e a criação de redes assistenciais regionalizadas, que constam do programa do prefeito eleito, com a entrega de regiões inteiras às OSs, que hoje desorganizam o sistema e quebram a sua unidade a partir dos seus próprios interesses particulares?
21. É fundamental o poder público voltar a ter controle sobre a gestão e o planejamento da saúde pública da maior cidade do Brasil. Não dá para terceirizar essa tarefa estratégica, como fez a dupla Serra/Kassab. É uma tarefa de Estado (que leva em conta TODOS os cidadãos e cidadãs, especialmente os mais pobres) e não do privado (que privilegia o lucro na saúde).
Tomara que paulistanos e paulistanos continuem a se interessar pela saúde, como demonstraram na eleição de 2012. É uma questão que diz respeito a todos nós. E participem dos conselhos de saúde para fiscalizar de perto o que será feito a partir de 1º de janeiro de 2013.
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