Governo privatiza as políticas sociais, denuncia Frente em defesa do SUS
“O governo quer dar a impressão que a Ebserh é dada como certa, mas ela precisa ser aprovada pelos conselhos universitários”, argumenta uma das principais coordenadoras da Frente, Maria Inês Bravo, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Criada em 2010, a Frente é contra qualquer forma de privatização da saúde, seja por meio de organizações sociais (OSs) e, agora, pela Ebserh.
Maria Inês Bravo - A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde surgiu em 2010, em um seminário no Rio de Janeiro, a partir de uma articulação de quatro fóruns: Rio de Janeiro, Alagoas, Paraná e São Paulo. Inicialmente, a nossa atuação centrou-se na luta em torno da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1923/98, que questiona a lei sobre as Organizações Sociais (lei 9637/98). Mais de 500 pessoas participaram desse seminário, o que superou nossas expectativas. Conhecemos pessoas de Fóruns que não sabíamos que existiam, como o do Rio Grande do Norte, e colegas de outras localidades saíram com o compromisso de criar novos Fóruns. Hoje, já temos 18 fóruns estaduais, em locais como Minas Gerais, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, e 14 municipais. Em breve serão formalizados mais três fóruns, os de Vitória (Espírito Santo), Mato Grosso do Sul e Sergipe.
Quais os princípios da Frente?
MIB - Temos como princípios fundamentais a defesa do SUS 100% público, estatal e de qualidade e uma posição contrária à privatização da saúde. A Frente remonta historicamente à Reforma Sanitária construída nos anos 1980, que articulava uma perspectiva mais ampla da saúde, a partir da determinação social do processo saúde-doença e de uma discussão sobre um novo projeto societário. Infelizmente, a maioria dos personagens históricos desse período tem defendido a reforma flexibilizada. Mas nós, da Frente, a defendemos nas suas origens. Somos uma Frente suprapartidária, numa perspectiva de esquerda, que busca unificar as lutas em torno da Reforma Sanitária dos anos 1980.
Quais as linhas mestras de atuação da Frente?
MIB - Temos uma agenda para a saúde com cinco pontos: a) a determinação social do processo saúde-doença, ou seja, a saúde sendo vista num contexto mais amplo das desigualdades sociais; b) a discussão sobre gestão e financiamento da rede pública estatal de serviços de saúde, ou seja, gestão pública e dinheiro público só para o serviço público; c) modelo assistencial que garanta o acesso universal com serviços de qualidade, priorizando a atenção básica com retaguarda na média e alta complexidade, ou seja, a UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) não garante isso; d) política de valorização do trabalhador da saúde e e) efetivação do controle social.
Que avaliação a Frente faz das UPAS?
MIB - Somos contra as Upas. Inicialmente, no Rio de Janeiro, elas fizeram parte de uma tentativa de militarização da saúde, já que foi feito um concurso dos bombeiros para a implementação das primeiras unidades. Depois, com a aprovação da lei das Organizações Sociais (OSs), foi o Rio de Janeiro que puxou a atual proposta de Upa, que não está colocada em nenhum modelo assistencial que eu conheça.
Qual o modelo assistencial defendido pela Frente?
MIB - O modelo assistencial previsto pela Reforma Sanitária que defendemos é hierarquizado, o que não acontece com as Upas. Elas são, na verdade, unidades pré-hospitalares com o objetivo de reduzir as tensões das emergências. Não fazem referência e contra-referência, ou seja, não encaminham para outras unidades. Defendemos a ampliação da atenção básica. Ou, então, uma experiência que tivemos em meados dos anos 1980, que foram as unidades mistas da Baixada Fluminense. Nelas, você tinha atendimento primário e a articulação na perspectiva da emergência. Foi uma reivindicação do movimento de saúde da Baixada, que era ligado à Teologia da Libertação, a Dom Mauro Morelli e a Dom Adriano Hipólito. Enquanto nessa experiência se buscava o atendimento completo, a Upa serve só para amenizar a dor e trata dos sintomas. A pessoa não tem um acompanhamento. Com isso, a doença vai crescendo.
Essas Upas são operacionalizadas por Organizações Sociais. A Frente já identificou grupos econômicos por trás dessas OSs?
MIB - Essa é uma pesquisa que estamos fazendo. Ainda não conseguimos identificar os grupos econômicos, mas percebemos que as OSs estão se espalhando. Por exemplo, a Marca, que foi a OSs do Rio Grande do Norte que gerou um processo contra familiares da ex-governadora do estado, também está no Rio de Janeiro. O dono da Inip, de Pernambuco, é secretário de saúde do município do Recife. E eles estão se espalhando pelo Nordeste. No Rio, também temos as Paulistas, que são ligadas, infelizmente, a Unifesp. De São Paulo também temos a Iapas. As OSs se multiplicaram mais nos anos 1990, em São Paulo, porque são uma proposta do Bresser. A partir dos anos 2000 é que elas vão se ampliando para todo o país. No Rio de Janeiro, as OSs foram aprovadas no município em 2009 e no estado em 2011. Por trás delas também há toda uma indústria dos laboratórios de análises clínicas. Já foi possível constatar que, em todos os estados brasileiros que têm OSs, existe corrupção, com o Ministério Público e os tribunais de contas questionando. Não conseguimos terminar um estudo ainda com relação às Fundações Estatais de Direito Privado, porque elas estão mais efetivamente na Bahia e em Sergipe, mas estamos investigando. Também ainda não conseguimos contrafatos em relação à Ebserh.
Mesmo com todos esses problemas, as Upas foram abraçadas pelo Ministério da Saúde?
MIB - Sim. Infelizmente elas fazem parte de um programa do governo federal. O governo do PT (Partido dos Trabalhadores) não só defende as Upas, como criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Tudo isso mostra, a nosso ver, a privatização da saúde. Vimos, nos anos 1990, a privatização das empresas estatais. Mas o que aconteceu, a partir do governo Lula, foi a ampliação da privatização das políticas públicas. E a saúde tem sido a mais atacada. Só no Rio de Janeiro existem 31 Organizações Sociais qualificadas pelo Estado, sendo que 24 estão na saúde e as demais estão no esporte e na educação. Por meio das OSs, o governo quer se retirar de cena das suas obrigações de Estado, delegando os serviços da saúde. Essa é a grande construção do governo: entregar tudo o que foi construído nos anos 80 pelos trabalhadores da saúde para a iniciativa privada. Por enquanto, a saúde pública tem sido mais atacada, mas há o perigo de que a educação seja o próximo alvo. Não é por acaso que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso apoiou a presidente Dilma pela Ebserh, dizendo, ainda, que mais adiante seria criada a Empresa de Serviços Educacionais. Ou seja, não pára por aí. Tem a proposta, por exemplo, de uma empresa para gerir a Fiocruz.
MIB - Somos contra e temos denunciado que universidades estão assinando contratos com a Ebserh sem passar pelos Conselhos Universitários. Recentemente, conseguimos que o Conselho Nacional de Saúde aprovasse duas moções contra a Ebserh. Ela é ruim porque terceiriza os hospitais, desrespeita a autonomia universitária, desarticula ensino, pesquisa e extensão e assistência, além de ameaçar o caráter público da saúde e da educação.
Para o cidadão, por que a Ebserh é ruim?
MIB - Um exemplo claro diz respeito aos planos de saúde, pois abre brecha para que exista, de forma oficiosa, uma prioridade de atendimento aos usuários desses planos. Outra questão é a rotatividade de pessoal, que cria um atendimento de má qualidade. Na perspectiva da Ebserh, os contratos devem ser de, no máximo, cinco anos. Consequentemente, não fixa o trabalhador de saúde, que não cria vínculo e compromisso com a instituição. O primeiro edital, que foi na Universidade Federal do Piauí, foi para contratação por seis meses. Como a Ebserh tem um contrato com a universidade, ela não pode fazer contratos longos, pois a universidade pode romper. Com isso, os profissionais de saúde terão sempre insegurança no trabalho. Outra questão é que a gestão empresarial acaba selecionando algumas patologias e algumas pessoas. Um exemplo: se a pessoa hoje tem várias doenças crônicas ela dificilmente consegue se internar na rede privada. Colocam barreiras, pois ela é cara. Se houver uma gestão empresarial no sistema público, esse doente crônico ficará sem atendimento. Muita gente não vai conseguir colocar o pé no hospital porque será barrada na porta. Entendemos que a assistência deva ser integral, pois o paciente não necessita só da cura. Ele precisa ter uma assistência multi-profissional. Esse olhar diferenciado que o sistema público ainda tem será perdido com essa gestão “flexível” da Ebserh.
Como a Ebserh afetará a formação de novos profissionais?
MIB - Será uma gestão produtivista, com meta de produção e de trabalho, que vai acabar com a qualidade da formação. Sabemos que há uma rede de ensino privado sedenta de espaços para estágios de formação. Então, com a Ebserh, os hospitais das universidades federais e estaduais poderão fazer contratos com essas instituições particulares para receber os alunos de instituições privadas. E isso com recursos públicos, que serão transferidos para a iniciativa privada. As pesquisas também vão ficar prejudicadas, pois a autonomia do pesquisador ficará prejudicada, pois ele ficará vinculado a quem paga. A questão da Ebserh, como de todas as parcerias público-privadas, é que é uma forma de privatização.
Os trabalhadores da Ebserh serão regidos pelo Regime Jurídico Único (RJU)?
MIB - Não. Haverá, isso sim, uma precarização do trabalho. Os contratos serão pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que bate de frente à luta histórica dos trabalhadores das áreas da saúde e da educação por concurso público. É um contrassenso em relação ao acórdão do Tribunal de Constas da União (TCU), que em 2006 determinou que o governo federal regularizasse a situação dos hospitais universitários por meio de concurso público e por contração via o Regime Jurídico Único. Isso é muito grave. A lei diz, inclusive, que nos primeiros cinco anos haverá processo seletivo simplificado por dois anos, renovado por mais dois anos, com um acréscimo de mais um ano. Isso é um precedente, pois a gente não sabe depois se vai ter concurso público. É uma porta para o clientelismo. Para a Frente, a Ebserh é toda eivada de inconstitucionalidade. A lei diz que ela não vai quebrar a autonomia universitária, mas, na prática, vai, já que há um artigo que diz que a Ebserh está autorizada a fazer contratos de pessoal, compras e a gestão do hospital universitário. Ou seja, materialmente quebra a autonomia e, por tabela, o vínculo com a universidade. A saída para os hospitais universitários está no concurso público e não na Ebserh. Defendemos a qualidade dos hospitais universitários, com financiamento e concurso público.
Como está a mobilização contra a Ebserh?
MIB - As lutas locais estão acontecendo. Defendemos que a aprovação da Ebserh passe, necessariamente, pelos Conselhos Universitários. Algumas universidades tinham encaminhado uma carta de intenção sem que ela fosse deliberada pelos conselhos, o que também fere o estatuto dessas universidades, que têm gestão colegiada. Temos denunciado essas situações e temos conseguido que a decisão passe pelos conselhos. Já conseguimos que a UFPR, através do conselho universitário, se posicionasse contra a Ebserh. É importante dizer isso, porque muitos acham que essa lei tem de ser cumprida. Em todos os lugares em que temos Fórum, há luta contra a Ebserh. Recentemente, as executivas dos estudantes da Medicina, Enfermagem, Nutrição, Farmácia e Serviço Social fizeram um debate junto com a gente e com seções sindicais do ANDES-SN e se posicionaram contrários à Ebserh. Enfim, esse debate tem se ampliado e alguns setores têm assumido posições contrárias à empresa, como, por exemplo, o Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFRJ. Estamos criando as condições. No Rio de Janeiro, que é aquela monstruosidade, só a UFRJ tem nove hospitais, mais aqueles da UFF e o da Unirio. Temos comissões em cada hospital para enfrentar e fazer os debates.
Há perspectiva da a Frente se tornar mais ampla, defendendo, por exemplo, a educação pública?
MIB - Nós começamos com a saúde, mas no terceiro seminário houve uma discussão se mudaríamos para nos tornarmos uma Frente contra a privatização das políticas públicas. Preferimos nos manter como Frente Nacional da Saúde para poder fazer uma articulação maior com outras áreas. Mas alguns fóruns já estão sendo criados nessa linha. Em Goiás, foi formado o Comitê contra as Privatizações de uma forma geral. Alguns fóruns municipais são fóruns de políticas públicas. Então, a nossa expectativa é de ser mais abrangente.
*Retirado do ANDES-SN
**O texto passou por revisão de texto e algumas correções, que em nada alteram o teor original